quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Levai as Cargas uns dos Outros



- Não posso esperar mais tempo, preciso do meu dinheiro, e se o senhor não puder pagar, declararei vencida a hipoteca, e venderei a propriedade, disse o Sr. Martinho.

- Neste caso sei, disse o Sr. Bonilha, que será vendida com grande prejuízo e, apesar de todos os meus esforços, eu e minha família estaremos na rua. É muito duro e eu desejaria que o senhor tivesse de ganhar o seu dinheiro como eu o meu; então talvez compreendesse alguma coisa do viver penoso de um homem pobre. Oxalá pudesse identificar-se uma vez comigo! Creio que havia de ter ainda um pouco de paciência.

- Toda a conversa é inútil; já esperei um ano e não me é possível esperar mais, volveu o Sr. Martinho, voltando para sua secretária, onde continuou a escrever.

O pobre homem ergueu-se vagarosamente do seu assento e saiu triste e cabisbaixo do escritório do Sr. Martinho. Sua última esperança estava desfeita. Tinha justamente convalescido de uma longa enfermidade que lhe havia consumido todas as economias com que pretendia pagar a última prestação. É verdade que o Sr. Martinho havia já esperado um ano, em que, por motivo de doença na família, não lhe tinha sido possível pagar a devida prestação, e ele sentia-se muito grato por isto. Mas este ano ele mesmo havia estado doente sete meses e impossibilitado de ganhar qualquer coisa, de sorte que fora necessário gastar as suas economias para prover sustento da família, e achava-se agora incapaz de satisfazer o seu compromisso. Teria naturalmente de começar de novo. Porventura Deus o tinha esquecido e abandonado à mercê dos ímpios?

Depois de haver deixado o escritório do Sr. Martinho, este começou a meditar na observação que o Sr. Bonilha lhe fizera: "Desejaria que o senhor tivesse de ganhar o seu dinheiro como eu o meu." À medida que escrevia, estas palavras lhe soavam incessantemente nos ouvidos: "Oxalá pudesse identificar-se uma vez comigo." Depois de tudo lhe haver passado mais uma vez pela memória, depôs a pena e disse: "Creio que isto me seria com efeito muito difícil. Penso que devo fazer-lhe uma visita esta tarde e ver em que condições se encontra a sua família; o homem despertou a minha curiosidade."

Por volta das cinco horas pôs uma peruca grisalha, vestiu um fato bastante usado e dirigiu-se à pequena casa do Sr. Bonilha. A Sra. Bonilha, mulher pálida e de aspecto extenuado, apareceu à porta. O pobre velho pediu licença para entrar e descansar um pouco, pretextando estar muito fatigado de uma longa jornada que fizera. A Sra. Bonilha convidou-o prazenteiramente a entrar e ofereceu-lhe como assento o melhor móvel que possuía em casa, depois do que foi preparar a ceia.

O velho a observava atentamente. Notou a fadiga de seus passos e de seus movimentos e o desalento que se lhe estampava no rosto, e o seu coração ficou fundamente comovido. Quando um pouco mais tarde entrou seu marido, um ligeiro sorriso lhe perpassou nos lábios e ela se esforçava por parecer alegre. O viajante notou tudo isto e admirava-se desta mulher, que por amor do marido manifestava uma alegria que no fundo não sentia. Depois de estar posta a mesa, sobre que havia somente pão, manteiga e chá, o hóspede foi convidado a cear com eles: "Não poderemos oferecer-lhe muita coisa; uma xícara de chá, porém, lhe há de convir depois de uma longa viagem."

O velho aceitou a sua hospitalidade e, enquanto fazia honra à singela refeição, induziu-os imperceptivelmente a falarem sobre as sua circunstâncias.

Comprei barato este lote de terra, disse o Sr. Bonilha, mas em vez de esperar até que tivesse economizado dinheiro suficiente para construir a casa, como deveria ter feito, pensei que poderia tomar emprestado alguns centos de mil réis. Os juros que teria de pagar não importariam em tanto quanto o aluguel com que me era necessário entrar todos os meses, e deste modo poderia economizar alguma coisa. Não pensei que a restituição do dinheiro me pudesse causar algum embaraço. No primeiro ano, porém, minha mulher e um filho adoeceram e as despesas excederam a receita, de sorte que nada ficou para amortizar a dívida. O Sr. Martinho concordou em esperar mais um ano, caso eu quisesse pagar-lhe os juros, o que naturalmente fiz. Este ano, porém, estive durante sete meses impossibilitado, por doença, de trabalhar e ganhar alguma coisa. Quando, pois, se vencer o prazo marcado para fazer a prestação, o que será muito brevemente, não estarei em condições de pagar.

- Mas, disse o hóspede, porventura o Sr Martinho não se decidiria a esperar mais um ano se o senhor lhe relatasse as sua circunstâncias?

- Não, respondeu o Sr. Bonilha, estive esta amanhã no seu escritório e falhei-lhe a este respeito; ele , porém, disse que precisava do seu dinheiro, sendo neste caso obrigado a dar por vencida a hipoteca.

- Deve ser um homem sem piedade, observou o hóspede.

- Isto talvez não, respondeu o Sr. Bonilha; a questão é que essa gente abastada nada conhece dos apuros em que se vêem os pobres. Eles são como qualquer outra gente e estou convencido de que se tivessem a menor idéia do que têm de sofrer os pobres, abririam o coração e suas bolsas. O senhor sabe que se tem tornado proverbial o dito: "Se um pobre carece de socorro, deve dirigir-se aos pobres." A razão é simples. Só os pobres é que conhecem as dificuldades da pobreza; eles sabem quanto é difícil comover o coração dos homens, e, para servir-me da minha expressão predileta, eles sabem identificar-se com o desgraçado e compreender a sua situação; por isto estão sempre a prestar socorro, tanto quanto lhes é possível. Se o Sr. Martinho tivesse a mais superficial idéia que fosse, do que eu e minha família temos de passar, creio que havia de preferir esperar alguns anos pelo seu dinheiro a apertar-nos como agora está fazendo.

Pode-se imaginar com que atenção o hóspede escutava as razões do seu hospedeiro. Um novo mundo se desenrolava aos seus olhos e experimentava uma sensação que nunca em sua vida experimentara. Logo depois de terminada a refeição, levantou-se, e despedindo-se, agradeceu cordialmente a hospitalidade que lhe fora dispensada. A pobre gente convidou-o a pernoitar, dizendo-lhe que de bom grado lhe dariam o que tinham. Ele, porém, agradeceu e disse:

- Não quero abusar da vossa bondade. Penso que posso chegar ainda à primeira vila antes da noite e terei então adiantado mais um pouco a minha viagem.

O Sr. Martinho não pode conciliar o sono aquela noite: revolvendo-se no leito rememorava os acontecimentos daquele dia. Tinha aprendido alguma coisa. No seu pensamento sempre havia relacionado os pobres com a imbecibilidade e a ignorância, e agora tivera de fazer a experiência de que logo a primeira família pobre que havia visitado excedia de muito em civilidade e inteligente simpatia a alta sociedade moderna.

No dia seguinte veio um rapaz àquela casa e entregou uma carta num grande envelope azul, destinado ao Sr. Bonilha. A Sra. Bonilha recebeu-a muito excitada, porque aos seus olhos os envelopes azuis tinham alguma relação com as leis e as autoridades, e julgou que não podia conter boa coisa. Pondo-a e parte, esperou até que o marido voltasse do trabalho para lhe entregar. Este abriu-a e leu-a em silêncio, depois disse, num desabafo de contentamento:

- Graças a Deus!

- Que é, João? perguntou a Sra. Bonilha.

- Boa notícia, minha mulher, respondeu João; - uma notícia como eu nunca a esperava, sim, com que eu nunca sequer teria sonhado.

- Que é? Conta-me logo; desejo ouvir também, se é efetivamente alguma coisa boa.

- O Sr. Martinho quitou a hipoteca e remitiu-me a dívida, juros e capital. Diz ele que, se algum dia necessitasse de auxílio, me dirigisse a ele.

- Oh, que contente estou! Isto dá-me nova esperança, disse a feliz mulher; mas que é que aconteceu com o Sr. Matinho?

- Não sei. Parece muito esquisito isto, depois da conversação que tivemos ontem. Irei imediatamente ter com ele para lhe dizer quanto nos tornou felizes.

O Sr. Bonilha foi à casa do Sr. Martinho e exprimiu-lhe com calorosas palavras o seu agradecimento.

- Que é que o determinou a usar de tanta bondade para comigo? perguntou ele.

- Segui o seu conselho, respondeu o Sr. Martinho, e procurei identificar-me com sua situação. O senhor há de ficar surpreendido de saber que fui eu aquele pobre viajante a quem ontem dispensou tanta amabilidade.

- Devera? exclamou o Sr. Bonilha. É possível? Como conseguiu disfarçar-se de tal modo?

- Não estava tanto disfarçado, mas o senhor não teria sido capaz de relacionar o Sr. Martinho, o rico advogado, com aquele pobre viajante.

- Ora, foi uma boa peça que o senhor nos pregou, disse o Sr. Bonilha; boa em mais de um sentido. Terminou muito agradavelmente para mim.

- Estava admirado, disse o Sr. Martinho, das largas visitas que o senhor tem dos homens e de sua ações em geral. Pensei que muito me avantajava ao senhor em condição e educação; mas quão acanhadas e egoístas eram as minhas vistas ao lado das suas! Sua esposa é uma mulher nobre e seu filho faria o orgulho de qualquer pai. Eu lhe digo, Sr. Bonilha, continuou o advogado com vivacidade, o senhor é rico, mais rico do que o poderia tornar o dinheiro; o senhor possui tesouros que se não adquirem com ouro. O senhor não tem nenhumas obrigações para comigo. Quer me parecer que vivi mais alguns anos desde a nossa entrevista de ontem. O que aprendi em sua casa vale mais do que importava a sua dívida e eu é que sou agora o seu devedor. Diligenciarei seguir sempre este lema: "Identifica-te com a sua condição, e procura acomodar a ela as tuas ações."

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